sexta-feira, 31 de agosto de 2012

peixe ao espelho

a nadar em loop junto ao vidro do aquário balão

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

água ar dente

a bílis o álcool o cloreto de sódio um mar
no chuveiro ia o mar que assim confundia-se tudo
e não havia ninguém a ver nem o próprio
o fígado e a humidade solução dissolução nadar
sem olhar

na ponta dos dedos um depósito a gritar
mudo

corro
corroente
corrosiva coerciva
incisiva
indecisa
no saibro

mato-me mais uma vez dramática com gritos
tapas os ouvidos ou diverges desvias-te da verdade escancarada
desisto

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

retrato


Encomendaram-me um retrato
com olhos nariz e boca
as pregas todas no vestido
e uma rosa
nas mãos ou no cabelo

Se fantasia é forçosa
que se limite ao fundo e muito pouca
Um reposteiro ou umas flores

Que um retrato é um retrato E para sê-lo
tem de ficar rigoroso
e acima de tudo parecido

E enquanto estico a tela escrupuloso
e mecânicamente escolho cores
a mim mesmo pergunto indiferente

De que fala esta gente?

                                 Mário Dionísio

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

silhueta da cidade montra


quando a cidade se começou a vender, deixei de usar qualquer café na minha rua porque o café não era para mim, porque o café custava um balúrdio e as mesas não eram feitas para ficar a ler o jornal

quando a cidade se começou a vender, as ruas já não tinham um desenho para eu chegar onde queria facilmente, as ruas passaram a dar saída só para museus, monumentos e lojas de galos de barcelos

quando a cidade se vendeu, já nem os anúncios eram para mim, porque a cidade não se vendeu para mim, porque eu não a podia comprar

quando a cidade se vendeu, os bilhetes de autocarro e de metro e de eléctrico e a gasolina, o gasóleo e os parquímetros passaram a custar um preço que se ria a bandeiras despregadas dos trocos que eu levo no bolso

quando a cidade se vendeu, os jardins deixaram de ter árvores e arbustos e lagos e bichos e passaram a ter o chão liso, duro e branco, e brancos eram os bancos, e continuavam a chamar àquilo jardim, porque jardim é uma palavra bonita

quando a cidade se vendeu, os parques infantis e as lojas e as garagens e os ginásios e os correios estavam forrados em todas as arestas de protecções contra os assaltos

quando a cidade se vendeu, as pessoas que lá viviam começaram a deixar o centro por ordem das classes sociais a que pertenciam

quando a cidade se vendeu, passou a ser um parque de diversões para turistas, e quem ainda lá morava escondia-se em casa porque as ruas e os cafés não eram feitos para si, e era uma chatice para os senhores importantes e os arquitectos urbanísticos quando as bichas da loja do cidadão saíam pela porta e davam a volta às esquinas

já não sei se a cidade se vendeu ontem ou se foi hoje, ou se é amanhã

domingo, 26 de agosto de 2012

L'info má

pas de nouvelles bonnes nouvelles?
passo de novas notícias
anúncio não anunciado
as interrogações as mesmas?
manipulados pelas aparências, ambiências, hortênsias
funicular

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

É possível

É possível
ficares aqui
connosco

Esse tempo
neste tempo
é provável

Resiste,
ó resistente:
é necessário

always bear in mind...


fragmento de Melville encontrado na rua

To enjoy bodily warmth, some small part of you must be cold, for there is no quality in this world that is not what it is merely by contrast. Nothing exists in itself.

menina pires fights for her silhouette



quinta-feira, 16 de agosto de 2012

carapauzinhos com arroz de censura

vieram-me dizer que tua casa acabava depois de amanhã
agarra o mapa e o pedal e o chouriço
a correr a ver o mar a correr a tropeçar na falésia
a tua barriga a gemer como a minha de fazer e de pensar
vem vamos agora assim com sol e cinza e facas de frio
a tentar temer desplanear
que as terras por que passo nas ruas conhecidas
anunciam carapauzinhos com arroz de censura
a tua mão sobre o lado direito o coração na mão
oh se a minha vida igual à tua não dava dois filmes
do outro lado do mundo ou noutro planeta o mordomo do papa contém a respiração
e a gente a correr a correr devagar a fazer isto girar
já lianas e fios tão longos que sorrio a desenhá-los e choro a vê-los
a tornear as dores bonitas e simples as fundas rir-nos delas
é de mapa é de papel que é preciso as rugas de quando se dobra
e vai de arco e flecha se me desapareces

a menina pires queria estar onde não está

Um terrível desejo de partir de uma vez para sempre
Uma horrível necessidade de viajar e não voltar
Uma estranha vontade de não estar onde se está
Um querer de outro sítio, já não chega a praia
Um precisar de ti, mas não saber quem és
Uma fuga sem saída, fugir para dentro do livro
Um prato de horizontes, o mundo plano
Uma sombra que não me acompanhasse a toda a parte
Uma busca em minha casa, à procura do crime

do filme O Bobo, de José Álvaro Morais

  
     - O que é que julgas poder ser fora daqui senão caricatura?
     - Mas combinámos sair de Portugal, não foi?

    - Pensas que vale a pena ser a caricatura desta terra noutra terra? Pensas que nos achavam graça?
    - Não faço ideia, Rita, não sei. Podíamos tentar.
    - Podíamos, mas não ia ajudar muito.




terça-feira, 14 de agosto de 2012

Aprendendo a ser delicada



a menina Loisa
viu o pássaro ainda vivo
voava vivo cheio de nervos
atento medroso ignorante
desenhava fios invisíveis

depois de inerte
de patas para o ar
asas de encontro à mesa
queria tocar-lhe para saber como era
isso de já não mexer
isso de se ter estragado
e tocava-lhe nos sovacos das asas
agora que podia

sempre em silêncio
a conter a respiração
não fosse ele acordar de repente
ou alguém vir intrometer-se
numa investigação só dela

tocava piano no pássaro